10 de set. de 2009

Assista a porra desse filme!


A Vampira e o Garoto

Obra-prima.

Eu simplesmente não tenho uma expressão melhor pra resumir este filme. Deixe Ela Entrar é uma história de vampiro contada da maneira mais... mais... eu queria dizer original, mas não é isso. Não é só uma maneira "diferente" de contar uma história de vampiro. Não é, tampouco, uma história única.

É mais que isso.

O filme e o livro usam a metáfora vampírica de forma maestral, em toda a sua plenitude. Eu sou apaixonado pelos sangue-sugas. Da pra falar sobre muita coisa que vivemos, muito da nossa sociedade, usando o vampirismo como um veiculo de análise. É isso que me fascina nesses seres. Eles somos nós em diferentes aspectos. Mas enfim, ao que interessa...

Uma mãe que não entende muito bem o filho, apesar de gostar dele plenamente, não percebe que o garoto sofre bullying na escola. Tem uma cena em que o garoto Oskar (que faz dupla romântica com a outra protagonista) chega chateado em casa por mais um dia que passou nas mãos dos valentões. Ele recebe a janta da mãe e ela pergunta que ferimento é aquele no rosto dele (um puta de um corte na bochecha branquinha, por conta de um golpe de vara), ao que ele inventa uma desculpa, daquela maneira meio encabulada e bem defensiva, e a sonsa da mãe nem se toca e acredita na desculpa ("você caiu numa pedra? que chato... tome mais cuidado da próxima vez, querido", responde ela com um sorriso afável e um chamego no garoto).

Digo, que merda de mundo é esse em que, de um lado, os pais estão tão estressados com a rotina de labor e, de outro, a escola, que deveria cumprir parte nesse papel de cuidado e educação, de orientar os pais, inclusive, e não possui instrumentação adequada pra lidar com um problema tão difundido e enraizado?

É nesse ponto que entra uma tacada genial do escritor. Ele se valeu de uma característica nacional - o fato de os suecos terem internalizado em todos os aspectos de suas vidas a adaptação as longas noirte e frio extremo por meio de uma vida excessivamente enclausurada - pra dizer que as pessoas também se enclausuraram em si mesmas. Todos os personagens secundários do filme reforçam esse aspecto. Cada um sofre isoladamente em seu próprio mundo e o diálogo é parco, o que transparece em amizades e relações amorosas desgastadas. O diretor conseguiu mostrar isso de forma belíssima, em tonalidades que variam sutilmente, de forma impressionante - os pais são divorciados; a genitora é dedicada, mas atarefada e meio perdida no papel de mãe; o pai, também afável, um tanto alheio ao mundo do garoto em alguns momentos; o professor de educação física é um cara supimpa e que gosta dos alunos (e não aquele estereótipo de treinador brutalizado americano), mas meio avoado; acontecem altos crimes na cidade, só que o clima é meio de letargia e certa obnubilação por parte das pessoas, de modo que parece fácil esconder os sinais e escapar impune. No meu entender, o caminho intencionado pelos autores foi criticar a sociedade ocidental... meio como faz o Saramago, em Ensaio Sobre a Cegueira - aquela coisa de sociedade capitalista pós-moderna, com uma pluralidade de valores tão grande, que muita gente acaba vítima desse caos e perde a capacidade de se situar como ser humano e ser social, acabando confusa e até mesmo adoentada. Bom, fui um pouco distante no exemplo, mas o livro pretende mostrar algo nesse sentido, pelo que sinto, e eu só sei que pelo olhar do diretor essa viagem crítica se torna um banquete de nuances e sensacões.

É realmente algo que foge do trivial.

E é muito massa que exista justamente um exemplo contrário a essa frieza e inumanidade. O calor, a descoberta do outro e a relação de amor verdadeiro é retratada no casalzinho fofuxo do Oskar e da vampira Eli. Palmas pros atores mirins, por terem demonstrado emoções de maneira profunda, mesmo tão novos. Eu li que a escolha do elenco demorou um ano pra ser finalizada. Olha, valeu a pena. Sob direção brilhante, esses dois puderam mostrar um talento extremamente bem conduzido e, não só isso, um perfil de apresentação que se encaixou como uma luva para o que os personagens demandavam - aquele jeito todo particular de mostrar um olhar profundo e humano nas cenas de close demorado, de quem está genuinamente acostumado a momentos solitários e que aprecia a companhia dos próprios pensamentos em horas de sadia reflexão (ou talvez de horas exageradas e nem tão sadias, vai saber...).

Esses dois personagens, que se sentem em conflito com o mundo, incompreendidos, e agora descobrindo uma relação salvadora para ambos, complementam-se nas nas fortitudes. Oskar ensina a vampira a existência da gentileza e da aceitação do diferente, enquanto ela, com sua sabedoria burilada na existência secular, ensina o garoto a não ser saco de pancada alheio. Essa simbiose, tecida de forma minuciosa pelo autor do livro, figura realmente como a trilha da superação e da felicidade.

No final do filme, a cena demonstra uma coisa muito singela, que representa a síntese da mensagem toda. Não vou falar pra não melar o impacto. Só estou levando uma gota de mel na sua língua pra aumentar a curiosidade. :)



PS: mais uma gotinha de mel: existem ainda dois sub-temas muito fortes e presentes que são trabalhados no filme, nos quais nem trisquei (um é identidade sexual, o outro moralidade de bem e mau). Isso é só pra dizer como essa obra-prima é inusitada ao trabalhar com uma carga tão complexa de mesclagem. Se gostar, leia o livro, que é mais complexo ainda. Não li, mas tenho certeza que vale a pena, senão pela habilidade literária, pela riqueza da mensagem.