"É uma tradição vigente em diversas comunidades católicas e ortodoxas que foi introduzida na América Latina pelos espanhóis e portugueses. É também realizada em diversos outros países, sempre no Sábado de Aleluia, simbolizando a morte de Judas Iscariotes. Antropólogos generalizam estes tipos de atividade como 'rituais de sacrifício'." (adaptado da wikipedia)
Hoje de manhã eu cumprimentei uma pessoa e trocamos bom-dia. Aí ela logo puxou assunto: "Mas que barbaridade que aquele goleiro fez, né?". Aí eu quis concordar, mas resolvi externar uma opinião: "é... ele ainda não foi julgado, né?". No fundo eu concordo, mas achei melhor evitar a conversa. Trata-se do goleiro Bruno do flamengo e o escândalo do assassinato de sua ex-amante, que pipocou recentemente na imprensa.
Mais tarde, depois do almoço, assisti na reportagem o goleiro Bruno sendo escoltado da polinter - onde havia passado a noite encarcerado - para o IML para fazer exames durante a investigação policial. Logo no começo do vídeo mostra um policial, visivelmente tenso, com um fuzil preparado, e o resto dos agentes fazendo um cordão pra proteger o principal suspeito da multidão. Uma cacofonia de acusações e sentenças dardejavam o goleiro, que, aparentemente sereno, sentou no banco de trás da viatura, se acomodou e foi levado do local.
A primeira coisa que lembrei foi de um pai que, inconformado com a morte da filha na queda do edifício Palace 2, no Rio de Janeiro, havia agredido verbalmente o construtor e ex-deputado Sérgio Naya na frente das câmeras da tevê. Foi uma cena forte e comovente. A segunda coisa que lembrei foi do caso Nardoni, que gerou tanto clamor na imprensa e sociedade brasileira.
E porque eu citei a queima de Judas?
Indo mais fundo
Bem, eu entendo que esse tipo de ritual, não raras vezes, funciona como uma forma de projeção. Em psicologia, projeção é um mecanismo de defesa que usamos quando não queremos ou não temos capacidade ou não temos condição de lidar com uma questão interna. Então, se ela começa a nos incomodar, nós a negamos e a colocamos como um problema de fora, não nosso. Quem tem o problema são os outros, e não nós mesmos. Quem é o autor do problema são os outros. Quem começou a coisa foram os outros. Quem tem a culpa são os outros.
Acho que a ligação ficou mais clara agora.
O fato de existirem situações horríveis e flagelos em nossa sociedade é uma constatação preocupante. Mas o que me preocupa mais ainda é a forma como lidamos com isso. Quando surge um assassino, a regra é agredir verbalmente, se indignar, arrancar os cabelos, demonstrar repúdio visceral. Todos vimos isso nas multidões repetidas vezes ao assistir à telinha de tevê - a turba se movimenta e a figura central se torna o alvo de todos os sentimentos de reprovação.
O que isso tem de ruim é que nós passamos a ver aquele indivíduo somente como aquilo e nada mais. Nós nos esquecemos que ele é um indivíduo completo, que pensa, age, sofre, alegra-se, tem vitórias e derrotas; enfim, passou uma saga completa. Nem caber num livro ele caberia. Metaforicamente falando, é como se amarrassem o autor ao poste em praça pública e colocassem a máscara de monstro nele. Ele foi extirpado de toda a sua humanidade. Seu rosto, com o qual podíamos nos relacionar, não existe mais. Em seu lugar está uma feição distorcida, que representa o contrário do que elegemos como bom e ético. Este é o típico ato de desumanização - remover de um indivíduo ou de um grupo tudo com o qual podemos nos corresponder, a fim de conseguir um inimigo externo. E isto pode até mesmo se tornar um processo consciente e arquitetado. Grupos de poder usam-no o tempo todo como tática de guerra política.
E assim voltamos ao ponto de partida. Projeção é um mecanismo de defesa que pode se desdobrar na criação de demônios externos, quando, na verdade... os demônios vivem em nós! É um processo de negação - porque é mais fácil e cômodo nos eximirmos da culpa; ou porque temos uma motivação tão torpe que queremos legitimá-la; ou porque estamos tão envolvidos que perdemos o controle das nossas ações; ou simplesmente porque não temos estrutura pra encarar a verdade. Os motivos são os mais variados. O objetivo aqui não é tornar a sociedade o verdadeiro vilão. De um certo modo ela é, mas permanecer nessa conclusão é simples demais. O que devemos perceber é que isso também não foge do limitado pensamento binário de bem-mal, herói-vilão, santo-monstro e jesus-satanás.
O desafio a vencer é interior
Refletir, fugir do maniqueísmo, é entender que parte temos nisso. É lembrar que acabou de sair um relatório sobre a qualidade da educação no Brasil explicando que o ensino médio está precário e perceber que, nos anos em que elegemos os governantes e nos subsequentes, não cobramos nenhum diálogo pra elaborar um plano pra educação no período eleitoral, nem fiscalizamos o Estado pra cumprir as metas (e muito menos participamos das escolas).É reclamar do atendimento no hospital, da falta de remédio e de equipes de atendimento e de como o governo não atende as doenças dos indivíduos, mas esquecer de tirar a água acumulada dos recipientes pra não criar o mosquito da dengue e ter preguiça de ir vacinar, mesmo tendo tudo pronto lá no posto de saúde. Onde o senso comunitário, de perceber que essas coisas afetam não só a nós, como aos outros?
É ficar indignado quando um assaltante nos aborda e leva os pertences - isso quando não nos machuca -, mas ficar alheio quando isso acontece com o outro e achar trabalhoso formar um grupo de denúncia ou protesto. É lembrar que a violência nas grandes cidades nos assola e querer sempre mais verba pra segurança e advogar a pena de morte como punição justa e preventiva, mas esquecer que a "fábrica de bandidos" que é a cadeia não é uma lata de lixo onde jogamos fora os sentenciados pra nunca mais lembrar, sem reintegração social, projeto de profissionalização e terapia; é, além disso, não perceber que o ambiente insalubre de vários bairros pobres acaba tornando na criança atrativa a carreira de "bandido pop star", pois ela não tem escola, apanha dos maiores e acaba achando que ser adulto é ser fisicamente potente ou um esperto enganador; para a comunidade, ela não tem nenhuma chance de crescer profissionalmente e curtir alguma ambição sadia, mesmo, não é? O ensino é precário e "entrar na faculdade" é palavrão de privilegiado, uma expressão tão distante quanto "virar astronauta" ou ridícula como "quero ser presidente".
Portanto, ao vermos os próximos "goleiros Bruno" e "casais Nardoni" da vida, é inteligente pensarmos em que tipo de problemas nossa sociedade possui, como casos assim foram germinados, o que se passou na cabeça dos envolvidos e como influenciamos pra que essas infelicidades se perpetuem.