Eu assisti um documentário interessante do Richard Dawkins que procura explicar porque a religião é um câncer que assola a sociedade e porque a fé torna as pessoas ignorantes. Chama-se "A Raiz de Todo o Mal?".
Uma questão que sempre me fascinou é sobre a existência ou não de Deus. Eu não sei me definir a respeito de uma maneira precisa e inequívoca, mas tenho uma boa noção da direção para a qual eu pendo. Sinto uma indubitável inquietação a esse respeito e estou sempre imerso nessa busca, envolto na construção da minha realização espiritual.
E, assistindo a esse documentário, que pode ser tomado como uma condensação de argumentos do livro "Deus, Um Delírio", eu não pude evitar um processo conturbado de, a um só tempo, concordar em alguns pontos, ter ressalvas em vários outros e tambem de sentir uma angústia alheia pelo equívoco (a meu ver) no resto.
A religião ensina o ódio. Certamente. Richard Dawkins percorre os continentes ocidentais e mostra casos, como o de alguns grupos pentecostais americanos, que se valem de um pensamento binário de certo-ou-errado e veiculam por meio de um discurso maniqueísta a descaracterização e desumanização de tudo que não pertence ao restrito mundo sagrado do grupo, gerando assim uma forma atrativa de defesa como resposta aos anseios de minorias ou desiludidos marginalizados, que encontram na auto-afirmação oposicionista, vitimista e agressiva a forma de sobrevivência social e cultural. Isto tambem ocorre em grupos maiores de identidade, como um país. O fenômeno do anti-islâmismo que assola os EUA é exemplo, mas a arquitetura do processo é a mesma: uma auto-afirmação como resposta à conjuntura internacional da ameaça (que, ironicamente, neste caso foi cultivada em boa parte pelo ocidente). Por isso eu concordo que a religião dissemina ódio. Vírgula. Porque aí entramos num ponto muito interessante: ele ignorou deliberadamente todos os outros grupos religiosos que não fazem parte desse processo. Quantas seitas cristãs, por exemplo, não passam ao largo desse cenário político e social de antagonismo e guerra? Muitas, ora.
Eu, na minha experiência, conheço várias que agem diferente dessa postura belicosa e autocêntrica. Um exemplo fora do meu mundo social, que pode ser facilmente reconhecido, é o protesto promovido pelos budistas tibetanos. Esta teve o sucesso de se expressar, em boa parte, de forma não agressiva. Eu tambem não poderia deixar de citar o caso pop de Gandhi: existiam os que queriam se rebelar pela revolução armada e os que queriam de modo pacífico e intelectual. Evidencia-se a complexa dinâmica de uma religião, pois que fenômeno social: existem diversos pontos de vista e modos de direção sob a mesma vertente. E seria reducionismo improdutivo descaracterizar a riqueza de pensamento que compõe uma religião. Seria mostrar o islamismo como aquela seita de homens barbudos e selvagens com fuzis queimando a bandeira dos EUA, e ignorar que é uma religião tão ramificada quanto o cristianismo, com suas inumeráveis manifestações e cosmovisões. É óbvio que nem todo islâmico é terrorista e que nem todo cristão quer queimar gays na fogueira. Seria como dizer que todo brasileiro adora futebol. Selecionar de forma tendenciosa alguns grupos que partilham uma caracteristica e generalizar essa característica para o conjunto é distorcer a realidade do contexto. Para provar que a religião é algo que necessariamente dissemina o ódio é preciso provar que isso vem do seu bojo. A mim me parece que o processo de inimização que contaminou vários movimentos mundo afora é de conjuntura diversa. Em resumo: o ódio é um processo em si, que pode como não pode estar relacionado à religião.
A religião alimenta o sectarismo. Uso aqui o mesmo argumento do item anterior. Gostaria apenas de acrescentar que fiquei impressionado com a forma como o processo de doutrinação pode se tornar insidioso em algumas igrejas. De fato, uma crítica que gostei muito foi quando ele compara a fé a um vírus, e que uma das formas mais fortes de passar esse vírus é dos pais para os filhos. Quando etiquetamos as crianças pelas religiões de nossas famílias e forçamo-las ao convívio exclusivo no meio da comunidade afim (como ocorre no exemplo, as crianças judias ou cristãs indo às escolas judaicas e cristãs), estamos automaticamente tornando-as parte daquele universo restrito. A separação, aparentemente civilizada, de "eu fico no meu canto e você fica no seu", gera tambem a segregação. Assim, do indivíduo é retirada uma riqueza, que é proporcionada pelo crescimento em meio à diversidade. Nela floresce a tolerância, qualidade fundamental em uma sociedade democrática que almeja a fraternidade e as relações de respeito.
A fé torna as pessoas irracionais. Neste ponto do programa, Dawkins aponta casos relevantes de lavagem cerebral e violência emocional experienciada pelos fiéis. Em um centro, adultos e jovens desde os doze anos são expostos a um vídeo que procura ensinar porque você deve evitar determinados comportamentos, que são pecaminosos. Para isso, a técnica utilizada no vídeo é uma espécie de reforço negativo: temor da punição espiritual. São mostradas encenações de pessoas sofrendo as agruras do inferno. Uma adolescente grita desesperadamente por clemência pelos atos perpetrados, mas a audiência sabe que ela passará a eternidade neste estado de sofrimento. A salvação está fora de questão. Uma mãe e a equipe médica encontram-se num estado de delírio e euforia psicótica por terem praticado o aborto. Vozes de agonia e terror pungente ecoam a todo tempo e labaredas de tortura permeiam o cenário. No final, a mensagem é clara: se você praticar algum destes atos, você sofrerá inominavelmente para todo o sempre. Se esta maneira de veicular a mensagem é do tipo que provoca graves preocupações em adultos frente a qualquer situação de provação, o que dizer da mente impressionável de crianças?
Uma especialista ouvida por Dawkins é psicóloga e ela própria passou por essa exposição desde pequena. Quando decidiu se libertar, passou a ajudar na recuperação de outros que saíram do mesmo caminho. O cientista pergunta a ela como foi sentir todas aquelas coisas e ela, com a voz embargada, admite numa honestidade exemplar, que se, mesmo após tantos anos, naquele momento ela ainda achava difícil revisitar as memórias para explicar como foram, tem-se aí a evidência de como as marcas são dolorosas e profundas. O que se tem, no tipo de igreja que proporciona esta formação religiosa, são pessoas que creem firmemente em algo por temor de pensar o contrário. Elas crescem em um meio em que se é encorajado a pensar daquela forma e, ao mesmo tempo, não se pode buscar interação com o mundo externo, porque tudo nele é pecaminoso. Portanto, o indivíduo nunca terá em pessoas de outros meios elementos de descoberta, muito menos contraposição, falhando, assim, numa forma crítica de análise e terminando completamente refém daquele sistema. Ele não conhecerá outra coisa no mundo. Por isso, não admira que determinadas pessoas tenham uma visão tão arraigada e particular das coisas. É, afinal, assim que se constroi um fundamentalista. Creio que estes são, de fato, os indivíduos irracionais aos quais Richard Dawkins gostaria de se referir. O problema é que, mais uma vez, ele cai na mesma argumentação dos pontos anteriores.
Só porque grupos religiosos constroem esse sistema de lobotomização, não quer dizer que todos o fazem. Pessoas como as desses grupos não sabem o que é um debate teológico. Para elas não existe debate. Existe o que está escrito e ponto final. Mas, distante da percepção do cientista, existe uma profusão de debates racionais acerca das doutrinas, em seus próprios meios e longe deles, promovida por religiosos e não-praticantes. Disto chegamos ao próximo ponto.
A religião é ilógica. Muito pelo contrário. Estivesse o biólogo disposto a conhecer os grandes pensadores que deixaram suas marcas desde, mesmo, o cristianismo primitivo, ele teria se maravilhado com a elaboração que é capaz de produzir o racionalismo cristão. Estiveram, por exemplo, em debate, assuntos da mais alta ordem no seio da intelectualidade há dois mil anos. Discutiram Paulo de Tarso e Simão Pedro sobre quais rumos tomar o movimento nascente. O primeiro sentia uma necessidade de distanciar-se da origem judaica, enquanto o segundo sentia o imperativo de apoiar-se no judaísmo e levá-lo a novos precedentes, projetando-o rumo aos novos milênios. Estes dois proeminentes da Igreja germinada, junto a seus partidários, promoveram longos (e por veses acalorados) debates, que não raro percorriam as definições teológicas e doutrinárias, tentando achar uma nova maneira de as dispor. Este foi o primeiro de uma série de debates cristãos, que mais tarde abarcaram uma diversidade infinda de outros assuntos, ecumênicos inclusive, relevantes aos novos momentos sociais.
Percebe-se, disto, como existe o esforço em explicar racionalmente a cosmologia espiritual. É certo que mescla-se a isso o processo político. Não devemos tomar do cunho político e sociológico, entretanto, um caráter contaminador, nem entender que isto torna o debate um pragmátismo terreno em detrimento de uma genuína fundamentação racional. Novamente, muito pelo contrário. É meu entender que estes elementos comunicam-se de forma mútua, sem caber aqui descobrir onde é o ponto de partida ou de chegada. É uma questão como a do ovo e da galinha - não cabe tanto querer responder qual veio primeiro, quanto entender a relação de como um influencia o outro. Portanto, no anseio de responder a questões existenciais, mentes de academicismo por excelência se ocuparam de desbravamento insólito no vasto mundo da racionalidade. Bebeu-se da água dos clássicos para provar, pela lógica, esta ou aquela visão. Dos séculos seguintes podemos citar os famosos Ário e Atanásio, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Todos se basearam profundamente na filosofia grega e romana. Dizer, então, que a religião é um vírus da irracionalidade denota superficialidade por parte do biólogo.
É ao, afirmar ilógica a religião, que Dawkins se vale de uma cilada costumeira - ao entrar no debate com o pastor ou líder, ele busca uma reação tal para mostrar que ele, o cientista, o ateu, o racional, acredita em evidências e fatos e que o outro, o religioso, o fiel, o irracional, o intransigente e o acrítico, acredita em algo simplesmente porque disseram-no assim. Quer tentar demonstrar Dawkins, além disso, que acreditar em fatos e evidências é ser racional. Mas ele esquece que o empirismo, que se baseia em fatos e evidências, não é a única forma de racionalismo. Existe tambem o outro lado da moeda, por assim dizer, que é o sistema racional-dedutivo. Além de ele aparentemente não compreender as delimitações do empirismo, ele ignora sua contraparte. É por meio do sistema dedutivo que conseguimos - numa forma didática de explicar - descobrir várias verdades. Foi por meio dela que o próprio Karl Popper sedimentou as bases da ciência contemporâneo. Os filósofos cristãos anteriormente citados tambem se valeram do sistema dedutivo. Como acusá-los irracionais, quando se empenharam com as mesmas ferramentas lógicas que deram molde à ciência de fatos e evidências?
Daí surgem lacunas na argumentação de Dawkins, que são falhar em reconhecer formas diversas de racionalismo além da ciência, falhar em demonstrar como a ciência pode responder questões existenciais dos seres humanos e explicar porque as pessoas devem ser obrigadas a descrer em Deus para encarar melhor a vida. Ele admite consigo, a certa altura, que Deus é algo para além da ciência responder (veja, isto não é o mesmo que dizer que a ciência desprova Deus; é dizer que, com base na ciência, não podemos criticar a crença de outrem em Deus).
Ciência e fé podem ensaiar caminhada conjunta. A religião não é somente dogma, tampouco se limita a simples fenômeno socio-cultural. Certo é observar que a fé se manifesta muitas vezes como irracionalidade, belicosidade e intransigência. Equivocado é afirmar que todas as religiões assim o são em virtude da interpretação particular e livre de alguns indivíduos e que são intrinsecamente violentas e destilam peçonha na sociedade.
Na minha opinião? Dawkins é agnóstico, mas ele ainda não sabe.
O mundo nos tempos de pandemia
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Este post está muito, muito atrasado.
A verdade é que descuidei do blog. Descaso, preguiça, resignação, raiva - o
leitor pode escolher o motivo.
Mas no...
Há 3 anos