17 de jan. de 2011

Pílula do esquecimento




A moralidade da sociedade vai alterar drasticamente nas próximas décadas.

Cientistas estão no caminho de inventar a pílula do esquecimento - soldados virarão máquinas insensíveis e vítimas de estupro perderão os traumas da noite pro dia.

Será? Avanços na ciência médica vem demandando da sociedade a abordagem de questões morais extremamente sensíveis. A clonagem, por exemplo, levanta perguntas perturbadoras para muitos: será lícito "cultivar" corpos e orgãos para reposição em caso de acidentes e doenças? Considerar-mos-emos clones humanos acordados como cidadãos? O que eles dirão a respeito?

Outras áreas de pesquisa, como a neurociência e a bioquímica, vem oferecendo caminhos promissores para no futuro tratarmos as memórias traumáticas e os sentimentos que poderemos enfrentar em situações desafiadoras. Dos exemplos citados no começo, podemos ter razoável expectativa de tratamentos que literalmente mudem a fiação do cérebro de um indivíduo, tornando-o efetivamente outra pessoa.

Um exemplo é a mudança de memórias. Partindo do princípio que elas são substâncias químicas armazenadas entre sinapses arranjadas de formas específicas no cérebro, se alterarmos essas configurações, abrimos precedentes para a dissolução de informações e até, admitindo técnicas extremamente refinadas, o implante delas. Outro exemplo é o que alguns estão começando a apelidar de "pílulas do dia seguinte". Experiências traumáticas estão intimamente relacionadas ao funcionamento da amídala, glândula que participa da regulagem do medo e vários processos correlatos que acontecem logo após as experiências de um indivíduo. Cientistas estão investigando substâncias que podem ser usadas para afetar essa regulagem. Com isso, espera-se diminuir o impacto de determinadas experiências que, de outro modo, causariam disfunções psíquicas profundas. O passo seguinte na lógica são comprimidos para diminuir a chamada Síndrome de Estresse Pós-Traumático em soldados que invariavelmente presenciam cenas de horror, como a mortandade de civis e as doses altas e constantes de sentimentos agressivos direcionadas ao inimigo; pode-se diminuir o impacto emocional de experiências como acidentes de carro, estupro e sequestro. Os cientistas, até agora, possuem as melhores das intenções. Isso está claro, pois o que motivou todas essas pesquisas em primeiro lugar foi justamente propor tratamentos para essas situações clínicas, que, de outro modo, certamente deixariam a pessoa disfuncional por um extenso período ou, com uma certa frequência, para sempre.

Nada mais louvável, diremos nós!

Isso não deve(ria) ser uma surpresa. Anti-depressivos e ansiolíticos podem ter como efeito o embotamento do indivíduo, dotando-lhe de características semelhantes à dos psicopatas e narcisistas. E este é um efeito premeditado e terapêutico! Não estamos acostumados com isso há somente décadas: desde tempos imemoriais usamos psicotrópicos, seja para fins terapêuticos, seja para fins ritualísticos. De qualquer modo, o processo de alterar a fiação do cérebro ocorre naturalmente em nossas vidas. Experiências nos transformam e digerimos elas. Uma sequência de infortúnios no amor nos leva à reavaliação (ou não). Brigas com os amigos e parentes nos mostram o quanto os outros estão (ou nós estamos) errados. Acidentes nos chamam a atenção para descaso do poder público e da sociedade (ou maus hábitos da nossa parte). E o que foi que passamos em todos os anos de escola? Aprendizado, oras...

Poeticamente falando, temos uma vasta bagagem espiritual para adquirir no caminho da vida. Que mais desejar? Não é esse o motivo que nos colocou aqui? Sermos algo? Mais fascinante do que essa dádiva só pode ser a expectativa de como usufruí-la. O que podemos tirar das nossas experiências? Considerando que temos essa escolha, como eu avalio o que passei? Não é isso que diz o ditado: "eu não controlo o passado, mas o futuro está nas minhas mãos"? Eu posso, afinal, escolher quem eu sou.

E agora, se não pela auto-descoberta, ao menos pela ciência.

Estamos descortinando uma época de eugenia por excelência. Talvez não esteja claro no primeiro momento: temos na ponta das ferramentas a técnica de ditar o que será um ser humano. Em breve, eu sinto que nossos netos escolherão em clínicas de natalidade a cor dos olhos dos filhos, pagarão a la carte pela modificação de genes que predispõem a doenças e a excelências, que os bisnetos tomarão o comprimido da bissexualidade no final de semana pra "aproveitar a festa ao máximo" e os tataranetos poderão se acostumar a uma vida supra-carnal ininterrupta no cyberespaço.

Isso não mascara o fato de que a questão sempre existiu. Escolhemos definir o que é ser humano desde quando - bem -, nos identificamos como tal desde o princípio. O que talvez nos deslumbre seja a intensidade que isso pode tomar. Uma coisa eu tenho certa: a moralidade está cada vez mais dinâmica.

Pra quem quiser saber mais:
pílulas do dia seguinte
terapêuticas para a memória

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