10 de nov. de 2011

Seja um revolucionário. O poder do português inculto!





Certos professores de português vem dando o que falar. E o que escrever também. Eles estão dizendo que escrever errado não é errado.

Exemplo disso é um livro que o MEC distribuiu nas escolas públicas brasileiras. Por Uma Vida Melhor, de Heloísa Ramos e outros autores, explica aos alunos da rede pública que [sic] "nós pega o peixe". Parece estranho? Em sua defesa, a professora disse que não pretende promover a língua informal em detrimento da formal, princípio com o qual concordarei plenamente. E embora ela tenha sido clara nas justificativas, a imprensa, cheia de melindres, está teimando em colar os fatos de maneira parcial.

Descobri que essa história toda começou eras atrás, quando surgiram os seres humanos. Ou seja, em 1941, quando nasceu o grande líder Kim Jong-il. Um arco-íris duplo coloriu o céu anunciando seu nascimento e o surgimento de uma nova estrela na abóbada celeste marcou sua saída do ventre de sua mãe. Ele pronunciou algumas palavras, e todos se prostraram. Estava fundada a linguagem humana.



E aí ele deu uns pegas no Putin e não telefonou nunca mais.



Mas aqui no Brasil a gente tem o Velho Testamento e Tupã pra disputar a origem do mundo, então vamos considerar que a linguagem surgiu quando aprendemos a andar pra frente. Pois bem, de um lado temos os defensores do livro da professora Heloísa, que afirmam que existe preconceito com as variedades da língua. Neste raciocínio, é um equívoco chamar de erradas as expressões de regionalismo e as linguagens características de determinado meio socioeconômico.

De outro lado, temos os defensores da norma culta, geralmente jornalistas ávidos pela integridade do seu chamado instrumento de trabalho - a linguagem -, que explicam que, se cada um falasse da forma que bem entendesse, a sociedade moderna iria à bancarrota. Assim, sem uma linguagem complexa que abarque cada vez mais nossas necessidades, iríamos voltar às cavernas.




Perduram as academias, o avon e a gilette.



Percebemos, de cara, o primeiro problema - a discussão está muito polarizada. Acabamos presos àquele binarismo, em que um lado chama o outro de chato e bobo e vence quem grita mais alto. Esse empobrecimento argumentativo é melhor deixado para casos triviais, como os que ocupam o tribunal penal internacional e o conselho de segurança da ONU. Aqui estamos com um grave assunto em pauta; caber-nos-á uma análise mais carinhosa e ponderada da situação.

Tomemos como exemplo um dos discursos de quem defende a norma culta. Parecem dizer alguns que é uma forma de expressão superior. Ora, a linguagem é algo plástico, que se adequa a situações e muda no tempo e no espaço. Ela é produto de situação. Situação social. Assim, todo padrão de comunicação que surge, parte do mesmo estado virginal, e seus artigos adquirem valor conforme são manipulados e significados, dentro de uma dinâmica social. É assim que muitos usam o padrão da norma culta para ostentar status. Não há um valor intrínseco na norma culta que dota o indivíduo de maior estirpe. Mas o contrário ocorre: dominar algum uso da linguagem é sinal de valor. E, francamente, isso vale pra qualquer domínio. Sabe-se matemática. Produz-se historiografia. Toca-se um instrumento musical.



E pilota-se com os pés. Sério.




É condição insuficiente dizer que quem não domina a norma culta é burro. O exemplo mais caro, e o mais indigesto, é o do presidente Lula. Digam o que for, não há como negar que ele é um cara inteligente. Não é porque "os pobrema" são grandes que "nós deve desistir". Negar a genialidade de um sujeito desses é negar a lua. É um bom exemplo porque demonstra duas coisas: primeiro, que a inteligência não é exclusiva da norma culta; segundo, que o uso habilidoso da norma inculta é sinal de inteligência. O que dizer dos repentistas, dos poetas e dos músicos de raiz? Não são eles um exemplo difuso e numeroso do exercício premeditado, estudado e aperfeiçoado de uma modalidade comunicativa?

É claro que aprender uma língua, especialmente a norma culta, deixa as pessoas mais inteligentes. Estas conclusões todas não deveriam ser surpreendentes. Mas, tristemente, elas o são. Pra muitos indivíduos. Assistir a alguns paladinos da norma culta tecerem críticas vazias é um pesar, pois espera-se uma posição mais lúcida de pessoas que dedicaram grande tempo ao entendimento desta linguagem. Eles enaltecem os grandes autores da norma culta como os únicos profetas da comunicação.



Broder, o drummond só fala em ASCII, ele não te entende!




Confiram este trecho do livro:

“É importante saber o seguinte: as duas variantes [norma culta e popular] são eficientes como meios de comunicação. A classe dominante utiliza a norma culta principalmente por ter maior acesso à escolaridade e por seu uso ser um sinal de prestígio. Nesse sentido, é comum que se atribua um preconceito social em relação à variante popular, usada pela maioria dos brasileiros”


Não posso deixar de concordar em gênero. Mas não posso ignorar o cheiro de uma cilada que insiste em permear este discurso, ainda que os autores não a tivessem plantado de forma intencional. É uma tática do manual extremista criar inimigos imaginários para manter acesa a chama do movimento e legitimar sua ideologia. Em suma, é um sectarismo obsoleto que, vale dizer, aflige tanto as chamadas direita quanto esquerda.

É por isto que alguns usaram do livro da professora um combustível para o embate pueril. Entraram no debate a esquerdopatia e o direitismo tomando como munição o livro para seus esforços. E assim perdemos o cerne da questão - na crítica pertinente do professor Evanildo Bechara: "dizer que a língua culta é um instrumento de dominação das elites é uma ortodoxia política e um obstáculo para o país".



"Não se nós pudermos evitar! Avante, Rangers!"



Alguns fatos: a norma culta possui, sim, muito mais verbetes que as informais. E ela recebe muito mais esforço que as outras para prover uma riqueza técnica. E é mais difundida. É uma candidata ideal para veicular objetivos da sociedade, como funcionar como linguagem comum a todos e servir de base para a linguagem técnica. Digamos que um médico peça o bisturi ao instrumentista, e este passe a ferramenta errada. Vemos aí que normas são necessárias por uma questão de ordem prática. É com esse mesmo princípio que se comunicam os engenheiros, os arquitetos, as indústrias e os físicos.



"Quem chamou esse fantasma? Peraí, Obi-Wan, solta a minha mão!"



Assim, podemos ter várias linguagens para várias circunstâncias. E foi isso o que o livro Por Uma Vida Melhor quis explicar. Uma linguagem não elimina a outra, tampouco é superior ou inferior. Elas possuem tão somente a aplicabilidade contextual. Portanto, uma linguagem técnica assim o é porque assim se quis. E a linguagem informal do dia-a-dia pode não ter surgido de reuniões e seminários, mas suas expressões surgiram de processo igualmente complexo de elaboração, só que em outro cenário. Quantas "piadas internas" ficam só entre você e seus amigos? Quantas expressões regionais surgem, com significados tão particulares, que adquirem uma vida totalmente diversa de sua origem?

A norma culta, como diz o livro, tem o seu lugar: “(...) um falante deve dominar as diversas variantes porque cada uma tem seu lugar na comunicação cotidiana."

7 de nov. de 2011

Liberdade de expressão: liberdade de ofensa?




Problema muito comum entre os humoristas recentes. Até onde alguém tem o direito de expressão? Quando se trata de profissão, tem limites?

Rola no facebook o viral em que o Rafinha Bastos se mete numa grande encrenca. Soltando uma frase sobre a gostosura de Wanessa Camargo grávida, ela compra briga e entra na justiça exigindo R$ 100.000 de indenização (que irá doar a uma instituição de caridade, caso vença, explicou ela).






"Comeria ela, e o bebê". o.O



Vamos, vamos. Não acho que ele quis dizer que tem fantasia com relação ao neném. Pedofilia? pfff... Pessoal está viajando na marionésia com os comentários que eu vi na internet. A gente tem que esperar de tudo nessas mídias sociais. Ele só quis dizer que ela é tão bonitinha que não se importaria com a gravidez. É comum o homem perder um bocado de atração pela mulher grávida. Existe o contrário, os que adoram, tambem. Me parece que ele se expressou como do primeiro grupo.

Baita dor de cabeça pro Rafinha, situação já vivida por Danilo Gentili e colegas do Pânico vez e novamente. A defesa comum usada pelos humoristas é que temos a liberdade de expressão. E ela me dá o direito de fazer o que eu quiser, oras!



"Galera, vamo trollar o holocausto, quem ta comigo levanta a mão"


Será?

Aí é que entram alguns dilemas. Pra me valer da aula de um professor, considere a lei em que é proibido entrar com cães no metrô. Os motivos principais são a higiene pública e a segurança num ambiente apertado em que o animal pode se sentir estressado. Neste sentido, o direito de um dono em andar com o animal publicamente é menor que o direito à higiene e à segurança coletivas.

Agora eu pergunto: e se o dono for cego? O deficiente físico tem direito de socialização como todos. Assim, se ele precisa de um cão guia para se deslocar, a lei buscou compatibilizar o direito à liberdade e à integração social do cego com o direito coletivo à higiene e à segurança. O resultado foi o reconhecimento do cão-guia como animal diferenciado, excepcional. Buscou-se assegurar a excepcionalidade do animal através de certas normas, que exigem o treinamento e a certificação dele para estas funções.



"meu, segura esse touro-guia! Cadê o dono?!"


A filosofia do direito entende que as pessoas são dotadas de propriedades intrínsecas, chamadas direitos fundamentais. Estas propriedades são aplicáveis em todos os sentidos possíveis, pois não se separam da condição do ser humano. Entretanto, na vida prática encontramos um fenômeno muito comum que é o conflito entre os indivíduos no exercício de tais direitos. Chamaríamos isto do dilema da vida social: tudo podemos, mas conviver em sociedade implica nisto mesmo, convivência - em teoria uma dialética de realidades.

E esses direitos fundamentais implicam numa harmonia automática? Olha, afora certos méritos de princípio (em que a análise implicaria na crítica à fundamentação filosófica desses valores), o que podemos responder com presteza é como se processa a harmonia destes direitos nos casos práticos. Independente de fazerem sentido ou não a priori, eles foram dados, portanto: como alcançar a aplicação máxima de cada um?

Se os direitos possuem interpretação horizontal, isto é, se todos são encarados como de mesma hierarquia, não cabendo a maior importância intrínseca de nenhum perante o outro; e se, portanto, os encaramos não como um conjunto, uma lista de elementos, mas uma unidade, esta, sim, passível de diferentes manifestações; então chegamos a uma maneira de encará-los tal que a sobrevalência de um sobre o outro não faz sentido, e escolher um a pretérito do outro quebra o próprio sentido de unicidade. Se a unidade é nula, não há, portanto, direitos que se manifestem. No exemplo do cachorro em metrô, não teríamos, portanto, sobrevalência literal de um direito sobre o outro, mas uma adequação entre as várias facetas de um mesmo objeto. Como uma moeda. Cada direito, portanto, é relativizado perante os demais.

Trocando em miúdos, se você xinga alguém, está ferindo seu próprio direito de expressão. Faz sentido?




Não.


Assim, chegamos à velha máxima de que os direitos não são absolutos. Eles atuam tendo em vista o corpo de onde vem. Um erro muito comum é usarem o direito de expressão como amparo para odiar e, mesmo, agredir a honra de outro. Ora, direito de agredir não é direito. Agredir é agredir, ação pura e simples, que não busca enquanto ação se justificar. Ela se basta a si mesma. Não cabe falar em "direito" de agredir, não faz sentido.


E então? O Rafinha Bastos tem ou não tem direito de ofender alguém? Claro que não!

A Wanessa Camargo se ofendeu. E ela tem direito de entrar na justiça. E o Rafinha tem o direito de se defender. E o juiz vai decidir da cabeça dele e inventar um juridiquês como desculpa analisar os direitos dos dois com ponderação e razoabilidade. A minha opinião sobre ter havido ofensa ou não é: sim, acho que houve. Eu, pessoalmente, entendi a piada. E acho que não me ofenderia no lugar dela. Mas existe a conversa entre amigos que se entendem, e existe a manifestação pública, que exige a atenção a pessoas muito diferentes de você.

E - claro -, existem ofensas e ofensas. Talvez a ofensa seja lícita quando provoque o repensar social. Talvez a questão mais importante não seja nem o princípio, mas a habilidade com que o humorista o aplica, gingando destramente em torno da ofensividade e tecendo sua crítica. Isso diz muito sobre sua competência como profissional. Alguns são tão bons que chegam ao ápice da sutileza.