Mas não é mesmo.
Você deve estar imaginando onde eu vou chegar no raciocínio. Mas provavelmente você teve a impressão errada. Não, eu não estou dizendo que o livro ou filme da Alice no País das Maravilhas é lascivo, erótico, nem nada do tipo.
"Então o que diabos você quer dizer?".
Bom, tudo começou quando eu tinha seis anos. Assisti o desenho feito pela Disney. Você conhece? Putzgrila, é muito bizarro. É surreal. Eu lembro de ver aquilo e ficar viajando na marionésia com cara de vaca pastando no infinito - e eu não quero dizer do tipo "professor, essa matéria não entra na minha cabeça!", não, quero dizer "eu coleciono alfinetes porque eles foram deixados pelos deuses alienígenas que pisaram na terra há quatorze mil anos". Tipo, é quebrar o paradigma num outro level... entende o tamanho do nó que deu na minha cabeça?
Com a que temos nessa idade, estamos no início do processo. A criança está ainda desenvolvendo o domínio das coisas mais abstratas, relativas e subjetivas da vida. Eu estava pegando o meu primeiro barquinho pra navegar nesse mar misterioso e seus segredos; por descobrir se a Terra era chata, quadrada, redonda ou em rosquinha; que continentes existiam além do horizonte e que tipo de gente "esquisita" e diferente eles guardavam; se as águas tinham mesmo aqueles monstros das lendas ou se tudo era imaginação; se a gravidade era pra cima ou pra baixo; enfim, eu estava pegando minhas primeiras pecinhas e tentando montar o meu universo cosmológico. Eu estava a sedimentar os primeiros parâmetros pra começar a compreender o mundo em maior profundidade.
E assistir aquele desenho foi o mesmo que pegar uma caixa de quebra-cabeça de sete mil peças, esparramar no meu colo e dizer "monta". E, pra piorar, os encaixes das peças eram todos defeituosos de fábrica. Ou seja, assim como numa espécie de jogo diabólico em que você sabe que a pessoa nunca achará a solução, aquele desenho era tão inacessível que nenhum elemento naquela porcaria encaixava com o que eu entendia do mundo. Era coisa muito além da minha capacidade de ascepção.
Ontem fui ao cinema assistir a nova versão de Alice, reencarnada pelas lentes do Tim Burton. E o filme é muito bom. Gostei. Embora tenha achado um pouco esgotada a fórmula Johnny Depp/Tim Burton/Helena Carter, eu tenho que admitir que é um ótimo trabalho. Johnny Depp é o tipo de ator (genial) cujo pior trabalho possível nunca ficará abaixo do razoável. Como Robert Downey Jr., por exemplo.
"Tá, mas você estava descendo a lenha no livro, Ismael. Onde você quer chegar, afinal?".
Como diria Morpheus, "siga o coelho branco" - eu quero chegar ao buraco de Alice. Venha comigo, pois estou com pressa!
Vamos pensar no significado das coisas. O que podemos tirar do livro (ou do filme) como significado para nossas vidas? Ou seja, como podemos ler a obra e tirar algo de útil para meu caso particular? Ou ainda, como podemos descobrir a mensagem que a obra quer veicular?
Não foi por acaso que me saltou aos olhos a influência vitoriana na narrativa. A primeira vez que tive contato com o espírito vitoriano foi por intermédio da literatura gótica. Deixo claro que nunca li nenhuma, mas joguei um RPG cuja proposta de diversão era o goticismo e sua mensagem, além de ser fã desde sempre dos vampiros e de Anne Rice, meios esses todos que bebem fartamente naquele repositório temporal.
A era vitoriana passou por várias transformações e um dos pilares era a mudança "espiritual" (tomada aqui num sentido sociológico). Eu gosto de entender o século dezenove como o atravessar de uma porta: estamos dando um passo para o mundo moderno e todas as suas novidades fantásticas. É um universo alienígena e fascinante, em que as pessoas, deslumbradas, começam a especular a extensão desse fascinante futuro, muitas vezes por intermédio da arte que pinta e tece um destino prodigiosoe - às vezes ridiculamente exagerado, às vezes espantosamente clarividente - como os livros de ficção científica da época.
Mas ainda não atravessamos a porta. Temos um pé ainda no passado. Nos valores tradicionais. E as forças a eles ligadas nem sempre cedem suavemente. Por isso, talvez, não se espante do período negro na França da Revolução; como um parto doloroso rumo a um novo status-quo, paradigmas digladiaram pelo controle do futuro. Em outras paragens o processo foi menos desumano, embora não isentas dos desafios inerentes a uma transformação visceral.
Era a época, como diria Marx, em que o feudalismo morria. Era ali que Roma soltava seu derradeiro fôlego. O assassínio começara séculos antes e estava previsto. A força teleológica dos lúcidos burgueses, que ansiavam por um novo futuro, era uma roda d'água tocando o destino, cujo córrego irrompia num rio caudaloso.
Os valores aristocráticos tornavam-se anacrônicos - chegou um tempo em que a etiqueta tornou-se vazia demais, supérflua. As atitudes ocas eram exemplificadas nos formalismos: assim como no filme vemos essa crítica realçada por Burton, na época do livro em questão proliferavam obras, vitaminadas que estavam de subversão (sutil ou escancarada, mas sempre presente), que mostravam as contradições e os ditos retrocessos e alfinetavam o setor tradicional da sociedade. Em exemplos "escandalosos" temos a literatura pornográfica da época, muito vendida entre a nata, que, afinal, compunham a maior parte dos letrados. Entre novels e publicações semanais diversas figuravam os capítulos, compêndios e cadernos recheados de desventuras amorosas. Ao mesmo tempo em que mais se fez o cerco aos costumes impuros e a perdição carnal, praticou-se a secreta entrega ao banquete e fartura dos prazeres. Esse aspecto vitoriano é interpretado como o ápice da hipocrisia.
Portanto, quando vemos Alice entrando no buraco e descobrindo um outro mundo, depois emergindo e tendo segurança de que aqueles referidos formalismos ocos não são para ela, a segurança é consequência natural da jornada espiritual que praticou, jornada essa que a dirige, clara e resoluta, a um meio diferente do qual nasceu. Meio que só poderá ser uma nova época que já se implementa. Ela abraça o porvir e assume os negócios do pai, quebrando inúmeros valores, além de barreiras próprias.
Não fazia sentido para ela casar-se e ser uma mulher da maneira como era adequado (proper, expressão que, no original, carrega sentido ainda mais profundo). Não existe príncipe encantado como espera sua tia. A tia dela, aliás, tipifica primorosamente a esquizofrenia da qual sofriam todos naquele mundo idealizado. Alice precisou fazer uma jornada num universo interior, o País das Maravilhas, para descobrir em que lugar se definirá no mundo. Esse é o lugar onde ela enfrenta seus próprios demônios e valores, anseios e desafios, que, encarnados nos diversos personagens de sua psiquê, polarizam-se em duas forças antagônicas; assim como nela os dois lados travam uma batalha de épica proporção que definirá o novo mundo, os gigantes paradigmáticos digladiam no meio social lá fora. Indo além: não só Alice, mas cada indivíduo da época passa por essa contradição interior - se dá o passo para o outro lado da porta ou se fica. Nesse caso, já sabemos o roteiro. Muitos dos ficantes perderam a cabeça.
Bem, talvez por isso eu não tenha entendido nada aos seis anos. Tudo o que me importava era gostar ou não daquelas cores e personagens engraçados esquisitos. Mas é aí que vejo uma falha. Não que tenha sido proposital, mas perceba: tudo sobre o qual discursei até agora é a minha opinião sobre a obra. É como a interpreto, como acho que ela funciona pra mim, como a leio.
Não posso dizer se Charles Dodgson quis colocar uma mensagem elaboradíssima em sua obra. Mas é inegável a influência que ela sofreu de sua época. Dizer o contrário seria contra-senso. Mas o caso, afinal de contas, é que venho dizer que não funciona muito para crianças. Penso que é confuso demais, pois não veicula algo de forma inteligível. É como tentar conversar com elas numa língua estrangeira: não adianta ensinar ou repreender, elas não entenderão, nem um, nem outro.
Há muitos anos eu assisti Digimon, um outro desenho animado, num dos dias em que não tive aula de manhã na faculdade (ou talvez estivesse no ensino médio). Não era mais tão afeito a desenho mas admirei-o muito pela qualidade. Na minha opinião, desenhos devem ter um valor educativo para as crianças; e aquele acertava em cheio. O roteiro era centrado em temas importantes do público infanto-juvenil, de forma lúcida e competente. Lembro que o episódio que assisti discorria com profundidade didática e - mais importante - comovente, sobre o valor da amizade, seus desafios e riquezas, de modo que fiquei encantado. Gosto de observar esse tipo de coisa, pois me considero um escritor. Por isso tento desenvolver (por pura curiosidade e fascinação) um olhar clínico para a obra alheia.
Eu não sei. Em se tratando de crianças, eu prefiro Digimon a Alice no País das Maravilhas...
PS: tive arrepios do gato listrado por vários anos
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